terça-feira, 4 de agosto de 2009

Um outro olhar

O blogue do Chapitô desafiou a senhora da Casa, Teresa Ricou, a reescrever a entrevista dada à jornalista Cristina Margato e publicada na edição n.º 1917 do caderno actual do semanário Expresso, nas bancas no passado dia 25 de Julho.


Partindo do excelente trabalho jornalístico de Cristina Margato clarificámos alguns pontos que, lidos por quem não conhece este projecto que conta já com 28 anos de existência, podem ofuscar a imagem deste sonho tornado realidade: A Reinserção Social através das Artes. Ora releiam...


Não deixou de ser a mulher palhaço Tété. Saiu de cena para outros poderem entrar. Sem preconceitos, mas vitima deles, Teresa Ricou fala da sua vida sem limites. Porque dorme tranquila. A Gulbenkian premiou-a esta semana.

Logo depois de Obama ganhar as eleições nos Estados Unidos, Teresa Ricou telefonou para um ministério apresentando-se como mailto:T%C3%A9t%C3%A9Obama@Chapito.org... Os amigos contam a história entre risos e começam a cantarolar "obama ou que linda obama"...

É apenas uma das muitas que há para contar desta senhora de discurso desbragado que há uns anos se apresentou como a primeira mulher palhaço de Portugal. Toda ela é liberdade, mas "também exigência", garante. À hora de jantar, no pátio do Chapitô, Tété falou-nos da sua vida, sem desvendar a surpresa que guardou para Rui Vilar, presidente da Fundação Gulbenkian, que acaba de a distinguir com o Prémio Gulbenkian Beneficência.


Blog do Chapitô - Qual é o momento mais importante do seu trabalho?

Teresa Ricou - É ter os professores todos à hora certa. É sentir os colaboradores todos, cada um à sua maneira e com as suas responsabilidades, envoltos de alma e coração, num projecto que é mais de todos do que de mim própria, pois que quando for a minha hora, estarei na pista a fazer rir.

BC - Consegue?

TR - Não.

BC - E zanga-se?

TR - Não me zango. Expludo.

BC - Como são as suas explosões?

TR - Começo às nove da manhã a ver quem está e quem não está… Estou a brincar, obviamente. Isto é metafórico.

BC - Mas tem mau feitio?

TR - Não, não tenho mau feito, sou exigente e rigorosa. Sou uma alta burguesa. Bem nascida, bem instalada. E quando for a momento voltarei à minha família, que está à minha espera. Agora, tenho um problema: sou muito exigente e muito rigorosa. Hoje, isso confunde-se com mau feitio. Portugal não tem rigor, e, como tem este mar à frente, as pessoas afogam-se a meio, e eu ainda não me afoguei. Estou com algum fôlego, mas posso perdê-lo. Não tenho nenhuma razão para ter mau feitio: sou gira, já namorei o suficiente, tive os amantes que quis, tenho o filho e a família que quero e escolhi outras famílias, alarguei o leque da minha. Vivo feliz e contente. Estou exausta de trabalho, porque é muito difícil trabalhar com muita gente, sobretudo com os adultos. Não é com os jovens. Por isso, não tenho mau feitio, e quando a coisa corre mal está em causa o meu nome e de um projecto que construi que se chama Chapitô. Por isso, tenho de defender a qualidade dos miúdos que saem daqui e das pessoas que cá trabalham.


BC - A luta é diária, apesar de a escola estar montada?

TR - Não tenho uma escola, tenho um projecto. A escola faz parte deste projecto em construção. Não pode ser algo feito à toa. Não trabalho sem rede. Fui construindo a rede, e é em cima dela que posso exigir e nela que muitos podem criar. Eu tenho 80 anos: 60 de vida e 28 de projecto.

BC - Porque diz isso? Não se sente como uma mulher de 80 anos, pois não?

TR - Não, às vezes até tenho 15 anos. Consigo ser bem disposta e não ter o peso da responsabilidade. Ponha-me ali no ATL com as criancinhas a ver como é…

BC - Gostava de ver.

TR - Também eu. Não tenho é tempo para lá chegar. Quero com isto dizer que segurar as pontas deste projecto é fundamental para o país. O Chapitô é um modelo. Quem quiser aproveite: temos a acção social integrada com a cultura e com a educação, sem falar na saúde e na habitação, que também temos para os mais carenciados; e estamos em negociação com o centro de saúde do bairro, porque os miúdos precisam de ter consultas regulares hoje ou amanhã, não é daqui a seis meses. E depois temos de os educar para a cidadania, para o corpo, o corpo tem de pensar. Educar estes jovens para uma sociedade mais solidária e responsável. E nisto não se pode adormecer. As pessoas distraem-se.

BC - E onde é que fica a vontade de fazer rir?

TR - Não consigo administrar e fazer rir. Quando chegar o momento estarei na pista a fazer rir. Para já estou na prateleira para muita gente estar em cena. Ainda pensei que este espaço fosse mais fácil de administrar, de uma forma mais dinâmica, e que a administração não fosse tão difícil… mas até agora levou-me 28 anos.

BC - Mas já deixou de equacionar o regresso aos palcos?


TR - Equaciono todos os dias! Qual é? Acordo a pensar nisso. Tenho esse prazer. Não consegui. Mas tenho de dar a respiração para que isso aconteça. Estou à espreita, como uma raposa velha. No dia em que tiver oportunidade, eu entro!

BC - Mas é mesmo uma raposa velha…

TR - Velha na medida em que já sei tudo, e agora já ninguém me vai enganar. Não vou cair em rasteiras; mas caí em algumas.

BC - Quais?

TR -Não quero pensar nelas. Não vivemos num mundo transparente. Este mundo está cheio de meandros. Eu já nasci com protagonismo dentro do mundo do espectáculo, na vida é preciso dar espaço, protagonismo a quem mereça e quem o conquiste. A minha carreira de artista correu-me bem. Também tive meu lugar como artista numa profissão difícil, única mas que brilhou. Agora penso, é chegada a hora de dar lugar, oportunidade aos outros.

BC - Consegue apontar o momento em que percebe que a sua missão é o circo?

TR - Não. Sei que gostava de fazer rir. O circo foi um derivado do cómico E quando é que descobre que gosta de fazer rir? Desde sempre. Para já estava sempre de castigo nos colégios, e dentro do castigo brincava. Transformo a miséria em coisas positivas. Tenho esse dom. Não nasci com dificuldades. Mas tenho-as por opção e transformo-as.

BC - Não tem fases melancólicas?

TR - Tenho imensas. Sou uma pessoa muito só. Este projecto é de uma solidão enorme. Mas aprendi a viver com isso. Preciso de estar sozinha. Muitas vezes procuro pessoas com quem partilhar esta administração, mas onde é que elas estão? Estas missões não se partilham. Vivem-se. Entregam-se.

BC - Não tem cúmplices?

TR - Na construção e manutenção, não tenho muitos. A Cumplicidade no plano estratégico é difícil e complicada é mais fácil usufruir. É para quem der e vier, mas sobretudo para quem vier e der. Isto é dito de uma forma construtiva e real.

BC - É meiguinha com os alunos?

TR - Não sou meiguinha. A vida não se faz com meiguices, faz-se com atenção e dando oportunidades, é importante saber gerir as emoções.

BC - Nem com o seu filho?


TR - O meu filho tem o seu lugar muito especial, tem todo o carinho e o amor de uma mãe apaixonada eternamente, preciso ter mais tempo para estarmos juntos.

BC - Foi mãe muito cedo.

TR - Tinha 19 anos. Foi um nascimento pensado com o Francisco Salgado.

BC - E o casamento não correu bem…


TR - É uma longa história, mas é engraçada (risos). Está para ser publicada, porque é a pré-história do Chapitô. Esta coisa de ser artista e ser boémia tem muito que se lhe diga, e não é fácil ligá-la com um engenheiro. Cada um foi à sua vida. Fomos muito amigos, ele já morreu. Digamos que eu tive um desvio, mas rapidamente passeei para o outro lado. Ele foi para o Brasil, e eu fui exilada para França, em 68/69. Fui com a Luiza Neto Jorge, com o Seixas Santos…

BC - Não voltou a ser mãe. Porque?

TR - Porque há muitos abandonados. Temos é que tomar conta dos que cá estão, não é estar a fazer mais. Aconselho vivamente as pessoas a olharem para o que está à sua volta. Cumpri todas as fases: casei, tive filho e depois comecei a incomodar-me com o que tinha à volta. Pus a mão na massa.

BC - Organização é algo que lhe falta?


TR - Organização e método está na base de tudo, a criação só terá sucesso se houver uma retaguarda organizada.O criador pode ter essa capacidade de organizar. Quanto a mim dei prioridade a uma organização geral do Chapitô, como se pode verificar. Se for capaz e for a tempo gostava de voltar a pensar em mim, e de cuidar do meu visual, saúde e continuar com a minha carreira artística. Preciso organizar-me.

BC - Vive aqui perto?

TR - Não, em Santa Catarina. Na outra colina.

BC - Também tem vista para o rio?

TR - Sim. Não me falta nada. Vivo no meio da fricalhada. Vou daqui e apanho-os lá, outra vez, de madrugada.

BC - As pessoas reconhecem-na na rua dos tempos da Tété mulher palhaço?

TR - Certas pessoas.

BC - E não tem saudades daquela errância do circo?


TR - Tenho imensas saudades, de andar na carrinha Volkswagen, de terra em terra, sair de madrugada no final do ultimo espectáculo e seguir para outra povoação, chegar com o sol a raiar, ver e ajudar a montar a tenda, e à noite preparar-me para outro espectáculo. Foram alguns anos nessa vida, uma riquíssima experiência. De momento apetece-me pensar, relembrar e escrever a história, digerir esses grandes momentos de uma vida vivida pelo mundo fora.

BC - Mas já não é a mulher palhaço…

TR - Claro que sou, sindicalizada como profissional – Palhaço, artista de circo.

BC - Quem é o possível herdeiro do Chapitô? Não é o seu filho?

TR - Velo pela herança do Chapitô, estamos ainda à procura de uma agilidade administrativa que prepare uma plataforma sólida para a concretização do “projecto global Chapitô” e no qual o meu grande desejo é ter com muito carinho e toda a competência o meu filho, ao lado de outros protagonistas de um projecto que será este, sendo deles o futuro.

BC - Tem vícios?


TR - Claro. Como que nem uma desalmada. Deixei de fumar. Fumava três maços por dia. Um acidente vascular cerebral ameaçou mas, apesar dos meus 80 anos, ainda não aconteceu, pois os muitos jovens de variados percursos e origens que aqui vêm procurar nas artes um ofício reforçam a minha vontade de viver e ser socialmente útil. Agora quero é continuar a escola no porto Lisboa, consegui avançar para o quarto ano da especialidade. Já falei com quatro universidades. Vamos lá a ver qual é que escolho. Quero fazer isto antes de morrer. O Chapitô é um modelo alternativo à nossa sociedade de consumo. É preciso chamar a atenção, o poder político está distraído e desfocado da realidade. Eles falam da política só por falarem. Não vivemos em democracia. E agora como é que se sai desta? Você telefone para o Bourdieu (já morreu) e ele que lhe diga. Se esta tarefa de 28 anos a construir um projecto: educação, cultura e social, não for importante, não foi viável, não tiver os resultados esperados…???Voltarei sempre à minha origem como artista e esta casa passará a ser a sala de espectáculos da Tété da mesma maneira que outras salas: Cornucópia, Comuna…Tentei construir um projecto para todos, à espera da minha hora. Não quis exactamente fazer do Chapitô a minha sala de espectáculos mas sim uma sala para muitos. Isto não é a minha casa. E não é uma questão de altruísmos, mas de responsabilidade social. Durmo descansada. Estou tranquila.

BC - E vota?

TR - Você gostava de saber. Mas eu não lhe vou dizer.

BC - Vota sempre no mesmo?

TR - Tenho umas oscilações… Neste momento, estou muito enervada, porque não tenho grande perspectiva. Está difícil, e você sabe disso. Mas eu por mim fazia uma revolução outra vez! Aproveitava as coisas boas, deitava fora as más e entrava em campo rapidamente com amor, humor e prazer. O adquirido para o resto da vida não pode ser. Tem de ser conquistado no dia-a-dia. Isto é uma sociedade de preconceitos. E eu também tenho esse peso. O preconceito de ser única mulher, de ser a única mulher palhaço e de ter o único Chapitô.

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